O problema se avoluma de tal ordem que na fase da sarjeta ele apenas deseja obter algumas moedas e continuar se embriagando
Nestas quase mil colunas sobre cinema e afins há quase 18 anos no mesmo jornal notei que nunca teci comentários sobre 'Farrapo Humano' (1945), um dos grandes filmes da história e, com certeza, o que melhor abordou o alcoolismo (sem glamourização então vigente, nisso e no cigarro, gestos, elegância do copo na mão etc).
Dirigido por Billy Wilder, arrebatou os 4 mais importantes Oscars: longa-metragem, diretor, roteiro adaptado e ator, a Ray Milland, que com aspecto de bom moço fez com que muitas macacas de auditório, na época, acreditassem que o intérprete, de fato, exagerava nas biritas. A história mostra Birman (Ray), aspirante a escritor, que não atinge o objetivo por sofrer de bloqueios mentais. Aos poucos, deixa-se dominar pela bebida.
O problema se avoluma de tal ordem que na fase da sarjeta ele apenas deseja obter algumas moedas e continuar se embriagando. Por consequência, esquece pessoas que o rodeiam e penam por vê-lo no estado crítico. Dentre elas, a namorada Helen (Jane Wyman), editora de revista.
O escritor e jornalista Ruy Castro, alcoólatra (está abstêmio desde 25/1/1988), enxergou em 'Farrapo Humano' várias características do bebum que dissimula ou somente finge que nada ocorre com ele. Birman se vê cada vez mais encurralado, tem acessos de culpa e delírios no sábado e domingo em que fica 'proibido' de entornar o caldo (o título original da fita é 'Fim de Semana Perdido' - o irmão o leva para viajar para tentar livrá-lo do vício).
Wilder explora de forma magnífica o problema do álcool e extrai de Ray atuação magistral. Além disso, a fotografia em preto-e-branco compõe o cenário ideal às ações de terror porque passa o personagem. Ao se entregar ao papel, nos deleitamos com sequências formidáveis, extenuantes, que revelam o preparo do ator sob a batuta de Wilder.
Temos diante de nós miséria, humilhação, piedade e o sentimento de querer que Birman se recupere de qualquer jeito. Ray Milland foi par de Grace Kelly em 'Disque M para Matar' (1954), de Alfred Hitchcock, e trabalhou com outros diretores ilustres, como Fritz Lang, Elia Kazan, Roger Corman e Cecil B. DeMille. Duração: 101 minutos. Cotação: ótimo.